terça-feira, 20 de setembro de 2011

PAULO FREIRE.

A Importância do ato de ler
*
Rara tem sido a vez, ao longo de tantos anos de prática pedagógica, por isso política,
em que me tenho permitido a tarefa de abrir, de inaugurar ou de encerrar encontros
ou congressos.
Aceitei fazê-la agora, da maneira porém menos formal possível. Aceitei vir aqui para
falar um pouco da importância do ato de ler.
Me parece indispensável, ao procurar falar de tal importância, dizer algo do momento
mesmo em que me preparava para aqui estar hoje; dizer algo do processo em que me
inseri enquanto ia escrevendo este texto que agora leio, processo que envolvia uma
compreensão critica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra
escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do
mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura
desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade
se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever
sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado - e até gostosamente - a "reler"
momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as
experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha
mocidade, em que a compreensão critica da importância do ato de ler se veio em mim
constituindo.
Ao ir escrevendo este texto, ia "tomando distância” dos diferentes momentos em que o
ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do
mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem
sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o
mundo particular em que me movia - e até onde não sou traído pela memória -, me é
absoluta-mente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e revivo,
no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a
palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores,
algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós - à sua sombra
brincava e em seus galhos mais dóceis à minha alt ura eu me experimentava em riscos
menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores.
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço - o sítio das avencas
de minha mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro
mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele
mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso
mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os "textos", as "palavras”, as
"letras” daquele contexto - em cuja percepção rio experimentava e, quanto mais o
fazia, mais aumentava a capacidade de perceber - se encarnavam numa série de
coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com
eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos
pássaros - o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi...

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